Inês

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Olhando a vida sob outro ângulo

Olá, você leitor deve estar se perguntando o porquê deste título olhando a vida sob outro ângulo, pois cada um de nós olha a vida sob ângulos diferentes, com as percepções próprias e peculiares de cada indivíduo.

No entanto, quando fui convidada a criar um espaço virtual, fiquei pensando como poderia contribuir com minha história, minhas vivências, minhas superações, minhas limitações, tendo em vista que todos têm algo a superar, algo a ensinar, e muito que aprender. Desta forma, vou iniciar o meu contato com este espaço contando a vocês um pouco da minha história, de minha trajetória e de minhas conquistas. Para vocês, dependendo do contato que tenham ou já tiveram com pessoas com deficiência visual, pode ser só mais uma história, como é por aqui, na associação de cegos onde trabalho, onde histórias riquíssimas aparecem todos os dias, de pessoas que sempre foram cegas, de pessoas que adquiriram a deficiência depois de adultos, e de pessoas que ainda estão perdendo a visão. As histórias por aqui são variadas, e variadas são também as sensações de impotência para aqueles que perderam a visão recentemente, e superações para aqueles que já tem deficiência a bastante tempo, e assim, vivendo com seus pares, as pessoas vão descobrindo suas potencialidades, reaprendendo a viver, e buscando olhar a vida sob outro ângulo.

Por outro lado, você leitor que não tem convívio com pessoas com deficiência visual, poderá considerar estas histórias extraordinárias, e o objetivo de minhas escritas é aproximar vocês de nossas realidades, desmistificando as questões referentes às pessoas cegas. Como se referir a uma pessoa com deficiência

Para iniciar, antes de lhes contar a minha história, vamos dialogar um pouco sobre como vocês poderão se referir a uma pessoa com deficiência. Bom, claro, inicialmente vocês deverão se dirigir a nós pelo nome, sem precisar evitar qualquer palavra referente a visualidade como: ver, olhar, assistir, pois estas frases nós também utilizamos. Eu quero ver este casaco, deixa eu olhar esta flor, eu assisti o filme ontem, pois como disse a vocês nós só olhamos a vida sob outro ângulo, e utilizamos para isso as nossas mãos, nossos ouvidos, nossas percepções.

Outra coisa importante, como vocês deverão se referir a nossa deficiência, não há a necessidade de evitar a palavra cega, mas não a utilizem de forma prejorativa, o ceguinho, e não utilizem nossa deficiência como algo que nos caracterize, pois temos outras características que nos são próprias e não comuns a todos os cegos. Podem utilizar também o termo pessoas com deficiências. No decorrer da história nomenclaturas diversas já foram utilizadas, no entanto, simplifique, não complique. Se aproxime, conheça, pergunte, pois temos o maior prazer em responder, auxiliar, dar as mãos e caminhar juntos.

Agora um pouco de minha história Eu me chamo Inês Berlanda Seidler, sou de família humilde, de pais muito amorosos e dedicados, somos em seis irmãos sendo um homem e cinco mulheres, e meus pais, não sabiam ler e nem escrever, mas sabiam a importância de dar estudo aos filhos, inclusive lutar pelo meu aprendizado.

Eu e minha irmã gêmea nascemos prematuramente, e ficamos na incubadora, desta forma, tive retinopatia da prematuridade e minha mãe percebeu minha deficiência por volta dos nove meses de idade.

Inicialmente meus pais percorreram todos os recursos da medicina, quando obtiveram o diagnóstico ficaram sem chão, temendo por meu futuro, mas tive uma infância saudável e feliz, em Xanxerê, região Oeste de Santa Catarina.

Desde criança sempre brinquei com meus irmãos de tudo, de bola, de corda, de pega-pega, de casinha, de escolinha. Nestas ocasiões, gostava sempre de ser a professora, como eu era cega e não poderia passar “deveres” para eles, rabiscava qualquer coisa no caderno e eles copiavam na íntegra aqueles traços que para eles não tinha muito significado, mas para mim se tratava de uma realização pessoal. Pensava eu estar de fato ensinando algo, contribuindo de forma significativa naquela brincadeira.

O tempo foi passando e eu participei até a terceira série do primário somente como ouvinte na sala, meus pais até compravam cadernos, lápis, mas quem fazia as tarefas por mim eram minhas irmãs, eu lembro que na época se usava para alfabetizar uma cartilha, e eu decorava as lições para poder fazer parte dos momentos de leitura. Em certa ocasião, quando em nossa sala recebemos estagiárias do magistério, uma delas disse-me que não poderia corrigir meus trabalhos já que não era eu quem os fazia. Nesse dia chorei bastante, sentia-me completamente inútil naquela escola e sem perspectivas para mim.

Lembro-me que um dia meu pai chegou à casa feliz dizendo que tinha achado um jeito de que eu pudesse aprender, queria matricular-me no Instituto Santa Luzia em Porto Alegre, ele dizia lá tu vai aprender como as tuas irmãs. Eu fiquei feliz e já me imaginava com outras crianças cegas como eu, já me sentia integrada fazendo as mesmas atividades que elas e interagindo em busca de conhecimentos. Mas, minha mãe tomou-me nos braços e chorou bastante dizendo ao meu pai que não me queria longe de casa. Ouvindo minha mãe chorar me senti muito egoísta de querer realizar-me embora com a infelicidade dela. Então, com lágrimas nos olhos disse: “pai, eu não quero ir!”

Quando eu estava para ingressar na quarta série, abriu em minha cidade uma sala de recursos, fui alfabetizada em Braille, e eu, com 10 anos já tinha a consciência e queria de fato retornar a primeira série para aprender todos os conteúdos pelos quais não me apropriei como ouvinte. Mas, submeteram-me a um teste e matricularam-me na quarta série. Lembro que enquanto os alunos estavam trabalhando com frações, eu estava aprendendo a escrever os números. Minha estadia no ensino fundamental foi sempre precária, eu me sentia defasada com dificuldades conceituais que me impediam de avançar.

Quando foi para ingressar no ensino médio decidi por fazer o magistério. Tinha um sonho, o de trabalhar com crianças cegas, de qualquer forma queria trabalhar por elas para que elas não passassem pelas frustrações que eu havia passado.

Estudava na parte da manhã, e, a tarde ficava na sala de recursos, dois dias por semana tinha atendimento e nos outros ia para ajudar as professoras com os bebês. Elas faziam trabalho de estimulação precoce e eu ajudava com bastante prazer.

Mas no fundo ainda não estava completamente realizada, sentia frustração por não ser totalmente independente, ia até a escola de transporte escolar, e me incomodava o fato de pensar que iria me formar, trabalhar... E não saberia ir até meu trabalho sozinha. O que diria aos meus alunos? Como poderia eu estimulá-los a andar sozinhos, ser independente nos afazeres da vida diária se eu não era. Que exemplo eu poderia dar? E não era somente pelo exemplo, eu queria ser de fato independente! Eu queria sair sozinha, tomar conta da casa, da roupa, queria sentir-me autônoma!

Certa vez, conversando com uma das professoras ela disse que eu poderia estudar na ACIC Associação Catarinense para Integração do Cego em Florianópolis, lá eu aprenderia tudo isso. Não tive paz até que consegui matricular-me e abandonei a terceira série do magistério a qual frequentava em Xanxerê.

No dia que ia embora, a mãe de uma criança foi se despedir de mim deu-me um forte abraço e disse: “um dia quero que a minha filha seja igual a você!” Eu falei: Acredite nela então!

Chegando à Associação Catarinense para Integração do Cego, não pude retornar no mesmo ano para o magistério, fui encaminhada para o apoio pedagógico e aulas de sorobã, (instrumento utilizado para realizar cálculos matemáticos), para embasar-me a fim de poder retornar no próximo ano ao magistério. Naquele ano fiz aulas de orientação e mobilidade, para andar com a bengala, bem como todos os cursos que me eram oferecidos. No ano seguinte matriculei-me no magistério do colégio Coração de Jesus. Meu estágio lá foi dividido em duas partes, a primeira foi numa terceira série onde havia matriculada uma menina cega, lá fiz apenas observação. A segunda etapa fui a uma sala de recursos da Fundação Catarinense de Educação Especial, com estimulação precoce, lá sim, eu interagi bastante, e me senti segura, pois já tinha vivências anteriores.

No dia de minha formatura sentia-me bastante realizada, meus pais vieram assistir, e eu fui buscá-los sozinha na rodoviária. Senti que naquele dia tirei dos ombros deles uma grande preocupação, pois eles perceberam que eu já não era mais aquela menina frágil e totalmente dependente dos cuidados deles.

No ano seguinte a minha formatura, fui fazer um curso de especialização na área da deficiência visual no Instituto Benjamim Constante, um colégio no Rio de Janeiro que atende somente crianças cegas e de baixa visão. Lá eles atendem desde a intervenção essencial (antiga estimulação precoce) até a oitava série.

No momento do estágio meu interesse era por realizar em uma turma de estimulação precoce ou pré, mas as normas da instituição não permitiam que a pessoa cega ficasse nessas duas etapas, dessa forma, realizei meu estágio em uma classe de alfabetização. Não posso dizer que não me frustrei com essa norma, mais uma vez era alguém que não acreditava na potencialidade da pessoa cega. Mas, como na ACIC eu já trabalhava com alfabetização senti que seria importante para eu ter mais essa experiência. Gostei da experiência e me realizei bastante, pois estava trabalhando e interagindo com crianças. No dia da minha avaliação do estágio, a coordenadora foi assistir a minha aula e ao término falou: Fazia tempo que eu não via uma aula assim. Elogiou-me bastante e disse que minhas ações eram regadas com amor.

De volta a Associação Catarinense para Integração do Cego, continuei trabalhando, casei-me e tive uma filha. Quando retornei a trabalhar após seu nascimento foi difícil minha adaptação com babá, creches... No ano seguinte decidi ficar em casa para cuidar do bebê. Não posso dizer que não foi bom para minha filha, mas eu sentia-me frustrada, e percebi que não poderia fazê-la feliz se eu não estivesse. Sentia falta de meu trabalho e me sentia inútil em casa. Surgiu um concurso e eu consegui efetivar-me e voltar a trabalhar.

Minha formação era de nível médio e eu pretendia fazer uma faculdade, mas ficava difícil conciliar o horário por causa do bebê, pois eu não tinha com quem deixar. Surgiu a oportunidade de fazer a Pedagogia a Distância da UDESC, através de um convênio com a ACIC. Fiquei bastante feliz e não hesitei em matricular-me.

Em se tratando do curso de pedagogia à distância este foi de grande valia para mim, pois, neste momento de minha vida com uma filha pequena tornar-se-ia difícil eu participar de um curso presencial, dessa forma, estudar em casa enquanto ela estava dormindo, ou, fazer trabalhos em grupinhos de amigos onde ela pudesse estar junto facilitou bastante minha caminhada. Nestes tempos atuais onde o ser humano em geral desenvolve vários papéis simultaneamente e precisa dar conta dos mesmos, trabalhar, estudar, cuidar dos filhos, da casa, muitas vezes não sobrando momentos para lazer e entretenimento é imprescindível que este esteja fazendo realmente o que gosta. E, eu amo estar trabalhando na educação. Gosto de perceber o desenvolvimento dos alunos, suas conquistas, e sou bastante otimista quanto minhas perspectivas de mundo. Onde estou gosto de fazer a diferença, dou o melhor de mim para que meu trabalho seja o mais próximo do perfeito, pois acredito que o aluno deve ter o que eu não tive, condições reais de estar na escola, instrumentos que lhe favoreçam a construção de signos e aprendizagens que lhes embase de fato ao mundo contemporâneo.

Hoje minha formação é de pedagogia em séries iniciais, com habilitação em educação especial e especialização em psicopedagogia. Trabalho na Associação Catarinense para integração do cego com crianças de 4 a 14 anos.

Sou casada com Alírio Seidler, ele também é deficiente visual e nossa filha Alice hoje tem 17 anos.

Ser mãe para mim foi um desafio, superação, e também uma enorme realização. Em família fazemos muitas coisas, passeamos, viajamos, pedalamos, e simplesmente vivemos a vida!

Gosto de esporte, pedal, e atualmente estou tendo uma experiênciamaravilhosa com a dança contemporânea e Lira.

Gosto de escrever poesias, pois com ela retrato meus sentimentos e visão de mundo!

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